Edison Laércio de Oliveira
presidente da Federação dos Trabalhadores da Saúde do Estado de São Paulo, diretor nacional de Saúde da União Geral dos Trabalhadores (UGT) e vice-presidente da Uni Américas/Uni Global Union.
09/02/2015
O ano de 2015 começou e com ele ressurgiu a polêmica discussão da legalidade ou não de se permitir a participação do capital estrangeiro na saúde nacional. Esta discussão ganhou novo fôlego com conversão da Medida Provisória nº 656/2014 na Lei nº 13.097/2015. A bem da verdade, a citada medida provisória que tão somente tinha o objetivo de propor alterações ficais foi transformada pelo Congresso Nacional numa grande “colcha de retalhos”, uma grande guarda-chuva que acolheu desde emendas parlamentares ao Orçamento até anistias a dívidas de clubes de futebol. Perdida no meio de tantos temas aleatórios, no capítulo XVII da lei, foi colocada a “permissão para a entrada do capital estrangeiro no setor de saúde”. O trecho pertinente é o seguinte:
CAPÍTULO XVII
DA ABERTURA AO CAPITAL ESTRANGEIRO NA OFERTA DE SERVIÇOS À SAÚDE
Art. 142. A Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 23. É permitida a participação direta ou indireta, inclusive controle, de empresas ou de capital estrangeiro na assistência à saúde nos seguintes casos:
I – doações de organismos internacionais vinculados à Organização das Nações Unidas, de entidades de cooperação técnica e de financiamento e empréstimos;
II – pessoas jurídicas destinadas a instalar, operacionalizar ou explorar:
a) hospital geral, inclusive filantrópico, hospital especializado, policlínica, clínica geral e clínica especializada; e
b) ações e pesquisas de planejamento familiar;
III – serviços de saúde mantidos, sem finalidade lucrativa, por empresas, para atendimento de seus empregados e dependentes, sem qualquer ônus para a seguridade social; e
IV – demais casos previstos em legislação específica.”(NR)
“Art. 53-A. Na qualidade de ações e serviços de saúde, as atividades de apoio à assistência à saúde são aquelas desenvolvidas pelos laboratórios de genética humana, produção e fornecimento de medicamentos e produtos para saúde, laboratórios de analises clínicas, anatomia patológica e de diagnóstico por imagem e são livres à participação direta ou indireta de empresas ou de capitais estrangeiros.”
A questão é polêmica, mas há alguns pontos que devem ser levados em consideração:
Do ponto de vista do Direito Positivo, a Lei nº 13.097/2015 é, sem dúvida, inconstitucional, pois ofende diretamente o Art. 199, § 3º da CF/1988 - “É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei”;
Não obstante, há que se pensar se o "espírito" com o qual a Constituição foi redigida ainda vale. Na época, a intencionalidade do legislador constituinte era garantir a "saúde pública" de qualidade como dever do Estado. Na prática essa intenção foi abandonada ao longo da última década, com a redução dos Investimentos da União, em saúde, como participação do PIB e com o incentivo ao crescimento dos Planos de Saúde, o que alias virou negócio de mercado financeiro, com a constituição de grandes fundos.
Deste modo, as perguntas chave a se fazer é a seguinte: “No atual estado de coisas a premissa originária de uma saúde pública de qualidade custeada pelo Estado continua valendo? Um modelo com maior participação da iniciativa privada faria sentido?".
Se partirmos do pressuposto original, de um sistema de saúde preponderantemente pública, então a limitação à participação do capital estrangeiro é indispensável como medida de "segurança sanitária" e defesa da soberania nacional. Se, por outro lado, verificarmos que este modelo “precipuamente público” já não existe mais e constatarmos a grande difusão do setor privado de saúde, talvez esta restrição não seja mais justificável.
Pessoalmente, a primeira vista sou simpático à liberação da participação do capital estrangeiro. Obviamente, desde que esta entrada obedeça a parâmetros bem definidos de atuação e conte com a devida regulação estatal. Entretanto, aí é que mora o perigo!!! No atual momento político do país, com queda da confiabilidade das instituições democráticas, não dá pra saber se existirá uma “adequada regulação”, e, caso exista, não faltam motivos para suspeitar que talvez não seja efetiva.
De qualquer maneira, pressupondo que habitamos um país sério, em tese a entrada de novos "players" pode contribuir para tornar o setor de saúde privada mais competitivo. Em qualquer mercado, inclusive o de saúde, o aumento da competição é sempre bem vindo, tende a melhorar a qualidade dos serviços prestados e a equalizar os custos, quem sai ganhando é o consumidor, neste caso o paciente! Além disso, a entrada de recursos e de “gestão externa” pode inclusive contribuir para a transferência tecnológica e trazer avanços clínicos.
Outro ponto positivo, é que a entrada de grandes grupos estrangeiros de saúde e seus investimentos poderia ajudar a amenizar a crise de financiamento e gestão da rede filantrópica. Uma das novidades é que grupos estrangeiros poderiam, inclusive, controlar e gerir hospitais filantrópicos. Diante do certo consenso existente no sentido de que a gestão das filantrópicas, sobretudo das Santas Casas de Misericórdia, precisa se profissionalizar não há como deixar de ver como benéfica a transferência de algumas gestões o capital estrangeiro. Seria, por assim dizer, uma solução mais definitiva para a indecifrável “caixa preta” do setor filantrópico.
Logicamente, existem riscos, e por isso mesmo uma adequada regulação se faz necessária. Sem o devido controle há o perigo de grandes grupos internacionais absorverem grande parte dos prestadores de serviços de saúde locais; o resultado seria uma espécie de monopólio da saúde privada, o que não é bom nem para o paciente, nem para o profissional de saúde.
Pelo lado trabalhista é sempre um desafio lidar com os grupos estrangeiros. O setor saúde privado estrangeiro, sobretudo o Americano, é bastante desregulado e precário do ponto de vista das relações de trabalho. Existe sim um risco, não pequeno, de pressões para a reprodução destes modelos de exploração do trabalho com a chegada destes grandes grupos estrangeiros no país.
No fim das contas, o grande problema, a meu ver, é que esta medida foi, como tantas outras, tomada no “tapetão”, sem o devido debate com a sociedade. Se uma proposta normativa está em desacordo com a Constituição Federal, mas se mostra viável econômica e politicamente, o caminho democrático é a votação de uma “Emenda à Constituição”, não a inclusão vergonhosa da medida numa Medida Provisória com tantos assuntos diferentes. Mais do que isso, se uma decisão de política pública afeta tantos brasileiros, pacientes e trabalhadores, precisa ser amplamente debatida e discutida com a sociedade, afim de que pelo debate e consenso possível encontre-se a melhor maneira de fazer as coisas.
A grande verdade é que sem a adequada participação dos trabalhadores no processo, não há como se evitar que a abertura da saúde ao capital estrangeiro tenha impactos negativos para a categoria da saúde. Por isso, entre a legalidade positivista e a viabilidade econômica escolhemos e reivindicamos o direito a um debate mais amplo sobre este tema!
UGT - União Geral dos Trabalhadores