08/06/2022
Situação no país retrocedeu ao patamar dos anos 90, e 6 em
cada 10 convivem com insegurança alimentar hoje
O ano de 2022 marca o retrocesso da segurança alimentar no
Brasil a um patamar de fome ainda pior do que o registrado 30 anos atrás.
Atualmente, 33 milhões de pessoas passam fome no país,
segundo resultado de uma nova pesquisa sobre o tema divulgada nesta quarta (8).
Em 1993, eram 32 milhões de pessoas nessa situação, segundo dados semelhantes
do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) —a população brasileira
então era 35% menor que a de hoje.
Naquele ano, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, lançou
a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida, a primeira grande
campanha nacional da sociedade civil sobre o assunto.
"A gente regrediu literalmente 30 anos na luta contra a
fome, o que nos assusta muito", diz o atual diretor-executivo da Ação da
Cidadania, Kiko Afonso. "Mas o sentimento de indignação da sociedade
brasileira hoje diante da fome de 33 milhões de brasileiros está muito aquém da
indignação de 1993, diante da fome de 32 milhões. Estamos inertes como
sociedade."
O levantamento divulgado nesta quarta, chamado 2º Inquérito
Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no
Brasil, foi feito pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e
Segurança Alimentar e Nutricional) e executado pelo Instituto Vox Populi. A
margem de erro é de 0,9 pontos percentuais, para mais ou para menos.
A pesquisa mostrou que 6 a cada 10 brasileiros convivem com
algum grau de insegurança alimentar. São 125,2 milhões de pessoas nesta situação,
o que representa um aumento de 7,2% desde 2020 e de 60% na comparação com 2018.
"Não tem nada mais prioritário no Brasil do que combate
à fome, independente de ideologia", avalia Afonso. "Sem alimento a
pessoa não consegue procurar emprego, estudar ou sair de casa. E tem de se
humilhar para sobreviver."
De acordo com a pesquisa, em 2022, 1 de cada 3 brasileiros
já fez alguma coisa que lhe causou vergonha, tristeza ou constrangimento para
conseguir alimento.
Esses novos indicadores da segurança alimentar apontam que
41% da população tem acesso estável a alimento em quantidade e qualidade
adequados, índice que é superior entre brancos (53,2%) e inferior entre pretos
e pardos (35%).
No outro extremo, a média dos brasileiros com fome é de 15%.
Superam essa marca aquelas pessoas que residem nas regiões Norte (25,7%) e
Nordeste (21%), na zona rural (18,6%), e em domicílios chefiados por mulheres
(19,3%) ou por pessoas pretas e pardas (18,1%).
"Temos desigualdades históricas do país que nunca foram
resolvidas: rural e urbana, homem e mulher, brancos e negros. E essas
desigualdades se reproduzem na questão da fome", explica a médica
sanitarista Ana Maria Segall, professora aposentada da Unicamp e pesquisadora
da Rede Penssan.
"É como se 41% da população estivesse protegida das
crises econômica e política que já vinham se arrastando nos últimos ano e
também do impacto da pandemia da Covid a partir de 2020", analisa Segall.
"Por outro lado, quase 60% dos brasileiros vive numa
situação de instabilidade que é muito afetada tanto pela crise quanto pela
pandemia, que pegou essa população já numa condição desfavorável."
Segurança alimentar é a situação em que há acesso pleno e
estável a alimentos em qualidade e quantidade adequados.
Já a insegurança é dividida em três categorias: leve (quando
o temor de faltar comida leva a família a restringir a qualidade dos
alimentos), moderada (sem qualidade, há alimentos em quantidade insuficiente
para todos) e grave (quando ninguém acessa alimentos em quantidade suficiente e
se passa fome).
A médica destaca que entre 2004 e 2013 houve um incremento
"muito significativo" no acesso das famílias a alimentos.
"Depois de 2013, você tem um precipício, e derrocada da
segurança alimentar ocorre de maneira muito rápida. Houve uma piora rápida e
muito expressiva do acesso a alimentos que continua até hoje e é pior dentro
dos grupos que já viviam em algum nível de insegurança alimentar", afirma
ela, que fez parte do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea),
extinto pelo governo de Jair Bolsonaro (PL).
Em 2018, 5,8% dos brasileiros passavam fome. Em 2020, essa
parcela subiu para 9% e, em 2022, chegou a 15,5%.
Isso quer dizer que, no intervalo de um ano, 14 milhões de
brasileiros passaram a conviver com a fome em suas casas.
Para Francisco Menezes, consultor da ONG internacional
ActionAid e ex-presidente do Consea (2004-2007), três das principais causas do
aumento da fome no país são o empobrecimento da população, o desmonte de
políticas sociais e de abastecimento, e a crise climática.
"Tivemos uma elevação muito forte do desemprego e um
processo de precarização do trabalho com o crescimento da informalidade.
Soma-se à perda de renda a inflação dos alimentos, que desde 2020 não arrefece,
e atinge itens básicos como arroz, feijão e óleo de soja, além do gás e dos
combustíveis", aponta ele, para quem uma política de estoques de
alimentos, abandonada pelo governo, é crucial num momento desfavorável.
Ele critica o modelo de acesso a benefícios de transferência
de renda, que requer acesso a internet e a um computador ou celular.
"Extrema pobreza e aplicativo não são coisas que combinem."
O 2º Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar aponta que
o maior percentual de pessoas em insegurança grave ou fome era entre quem solicitou
mas não recebeu o auxílio emergencial aprovado pelo Congresso para o primeiro
ano da pandemia (63%), seguido pelo grupo de quem sequer conseguiu solicitar o
benefício (48,5%).
O levantamento mostra que há fome em 13,5% dos domicílios em
que residem apenas adultos, enquanto entre as casas com três ou mais crianças
ou jovens de até 18 anos o percentual sobe para 25,7%.
O dado é especialmente preocupante porque aponta para danos
futuros. Estudos sugerem que o impacto da fome entre crianças e adolescentes
tem efeitos deletérios imediatos na saúde e no bem-estar, com potencial
comprometimento das potencialidades desses indivíduos.
Isso é o que mais mexe com Suelen Medeiros, 29, que mora com
os quatro filhos na periferia sul da cidade de São Paulo. Desempregada e sem
receber pensão do pai de seus filhos, ela conta que chega a ficar dias sem
comer para privilegiar as refeições das crianças, que têm entre 2 e 12 anos.
"Eu aguento sentir fome, eles, não", lamenta.
"Mas fico tão ansiosa por causa das crianças que até perco a fome",
diz ela, que recebe uma cesta básica de doação mensalmente, mas que nem sempre
é suficiente. "É muito difícil. Toda vez que meus filhos não têm o que
comer, meu mundo desaba. Não ter condições de dar nem um pão de manhã a eles
acaba comigo", afirma ela. "Não vejo a hora de arranjar um
trabalho."
A pesquisa da Rede Penssan foi baseada em entrevistas realizadas
em 12.745 domicílios de áreas urbanas e rurais de 577 municípios dos 26 estados
e do Distrito Federal. Trata-se de uma parceria das organizações Ação da
Cidadania, ActionAid Brasil, Fundação Friedrich Ebert Brasil, Ibirapitanga,
Oxfam Brasil e Sesc.
Fonte e Foto: Folha de São Paulo
UGT - União Geral dos Trabalhadores