25/08/2022
Na era do trabalho remoto, tecnologia abre caminhos para a
falta de gentileza
Joyce trabalha no setor de comunicações de uma empresa no
leste da Inglaterra. Ela demorou para identificar que o que acontecia no seu
local de trabalho era bullying.
A maior parte do trabalho na companhia já era feito
remotamente muito antes da pandemia e ela não se sentia atacada por colegas.
"Eu realmente não pensava nisso", afirma Joyce
—cujo sobrenome é omitido por questão de privacidade. "Eu ainda tinha em
mente a ideia tradicional do bullying como alguém me desrespeitando
pessoalmente."
Até que, ao longo do tempo, aumentou a sensação de que a sua
chefe (que tinha pouco tempo de empresa) a estava isolando constantemente e de
formas desconfortáveis. "Era um e-mail em grupo em que eu dizia uma coisa
e ela respondia com outra, ou ela começava a falar sobre mim em uma reunião no
Zoom sem me avisar com antecedência", ela conta.
Isoladamente, muitos daqueles incidentes pareciam pequenos.
Em um dia, a chefe mudava todas as senhas das redes sociais do trabalho e Joyce
não tinha mais acesso às contas. Em outro, Joyce recebia um email a
repreendendo por "resistir" às ideias da chefia.
Os incidentes se acumulavam. E, mesmo depois de trabalhar na
empresa há anos, seis meses foram suficientes para fazer com que Joyce deixasse
de amar o seu trabalho e chegasse ao ponto de querer pedir demissão.
"Foi uma experiência traumática", ela conta.
"Isso me abalou muito e fiquei muito triste."
É claro que o bullying é um problema no ambiente de trabalho
há muito tempo. Ele engloba um amplo espectro de comportamento e é tipicamente
associado ao trabalho presencial.
Um cenário conhecido ocorre quando um chefe dominador
desvaloriza um funcionário em público para humilhá-lo ou quando um grupo sai do
escritório para almoçar juntos, deixando deliberadamente um colega para trás.
Para alguns funcionários, o trabalho remoto forneceu alívio
e distância da tensão diária de ter que lidar com esses incidentes. Mas ainda
há evidências de que, à medida que as empresas adotam cada vez mais modelos de
trabalho remoto e híbrido, o bullying no ambiente de trabalho não só
permaneceu, mas desenvolveu-se, muitas vezes de formas mais sutis
—especialmente porque a tecnologia abriu novos caminhos para a falta de
gentileza.
Bullying remoto
O bullying remoto não é um fenômeno totalmente novo. Existem
dados que indicam que ele já vinha crescendo antes mesmo da mudança
generalizada para o trabalho remoto.
Um estudo de janeiro de 2020, conduzido pela associação de
recursos humanos CIPD (Chartered Institute of Personnel and Development), com
sede em Londres, demonstrou que 10% dos profissionais relatavam sofrer bullying
por email, telefone ou redes sociais.
"Nós já vínhamos observando casos de bullying
acontecendo fora do ambiente físico de trabalho", afirma Rachel Suff,
consultora de políticas sobre relações do trabalho do CIPD.
Por isso, a expansão do bullying remoto com a chegada da
pandemia não foi surpreendente para Suff. Ela acredita que a enorme quantidade
de canais digitais disponíveis "fornece mais caminhos para que as pessoas
sofram bullying ou sintam que estão sendo tratadas de forma inadequada".
De fato, em muitos casos, esses novos caminhos deram início
aos incidentes de bullying na era da pandemia.
Uma pesquisa da entidade americana Workplace Bullying
Institute demonstrou em 2021 que, de 1.215 trabalhadores remotos americanos
consultados, 43% relataram que foram objeto de bullying no ambiente de
trabalho, a maior parte por chamadas de vídeo e por email.
E um quarto dos participantes concluiu que o trabalho remoto
durante a pandemia de Covid-19 fez com que os colegas ficassem mais propensos a
maltratar os demais.
Em 2022, o número de casos de bullying apresentados à
Justiça do Trabalho do Reino Unido bateu o recorde anual de todos os tempos —um
aumento de 44% em relação ao ano anterior.
Os incidentes mais comuns incluíram comentários maldosos
durante chamadas de vídeo, exclusão deliberada de colegas em reuniões remotas e
o uso de aplicativos de mensagens para fofocas durante apresentações de
colegas.
No caso de Joyce, as ferramentas de colaboração digital
possibilitaram parte do bullying que ela recebeu da sua chefe.
Uma noite, após o horário de trabalho, Joyce recebeu uma
mensagem perguntando se ela poderia entrar em uma chamada de vídeo naquele
momento. Na chamada, a chefe pediu que ela abrisse um novo email que, para
surpresa de Joyce, era uma advertência formal, por escrito, da sua chefe —que a
leu em voz alta.
"Eu queria simplesmente sair da chamada", Joyce
conta. "Por que ela precisava fazer aquilo de forma tão dramática e
observar minha expressão?"
Por mais que se sentisse mal, dados do Workplace Bullying
Institute indicam que Joyce foi poupada de parte da humilhação, já que somente
ela e a sua chefe estavam na chamada.
Nas pesquisas do instituto, 35% dos participantes indicaram
que seu bullying remoto aconteceu em chamadas de vídeo na frente de outras
pessoas "em tempo real, com as expressões faciais sendo mais destacadas
pela tecnologia".
O bullying remoto em frente aos colegas pode não só ser
humilhante, mas também intensificar o sentimento de desconexão da equipe como
um todo.
Presencialmente, os colegas podem intervir para interromper
o bullying, demonstrando seu apoio pelo funcionário que é alvo da humilhação ou
discordando do autor do bullying, segundo Kara Ng, professora de psicologia
organizacional da Universidade de Manchester, no Reino Unido. Mas isso fica
mais difícil em um ambiente virtual.
De fato, pela via remota, alguns colegas podem nem mesmo
perceber o problema. "É muito mais difícil identificar o comportamento de
bullying no ambiente de trabalho digital", afirma Priyanka Sharma,
psicóloga organizacional e fundadora da consultoria de aprendizado do ambiente
de trabalho Mindtrail, com sede em Londres.
"É muito mais fácil excluir alguém intencionalmente das
reuniões importantes ou reter informações significativas e mais difícil
perceber quando um colega está preocupado", afirma ela.
A falta de intervenção pode deixar o funcionário alvo com o
sentimento de que seus colegas aprovam o comportamento de bullying, mesmo se
não for o caso. E, depois que há um incidente, os ambientes de trabalho remotos
oferecem menos oportunidade de conversas informais com os colegas para discutir
o que aconteceu.
"Não ter a possibilidade de esclarecer socialmente a
questão com alguém e compreender as normas do grupo pode ser muito
prejudicial", afirma Ng. "Você acaba simplesmente se sentindo cada
vez mais isolado."
Problema que se alastra
É possível que o isolamento do trabalho remoto possa também
mudar a forma como os profissionais interpretam o comportamento dos seus
colegas, aumentando sua propensão a sentir que estão sofrendo bullying.
Um estudo de 2017 com 1.100 trabalhadores remotos demonstrou
que esses funcionários tinham maior possibilidade de relatar que seus colegas
os isolaram, fizeram fofocas sobre eles pelas costas e até influenciaram outros
contra eles enquanto trabalhavam em casa.
Eles também afirmaram que, quando surgia um conflito entre
colegas, o trabalho remoto dificultava a sua resolução.
Sem as indicações físicas e o contexto da comunicação
presencial, o trabalho remoto realmente abre espaço para diferentes leituras de
mensagens que, às vezes, são simples.
"No contexto digital, muitas vezes nós precisamos
interpretar o tom de voz, o que é difícil", afirma Sharma. "Por isso,
as pessoas podem começar a questionar seu senso de pertencimento, se eles
realmente estão sofrendo bullying e se é intencional."
Essa zona cinzenta pode ser preocupante para os
profissionais, mas também fornece um "álibi" plausível para os
próprios praticantes de bullying. Com isso, o mau tratamento, de baixo nível,
pode aumentar.
Quando incidentes aparentemente pequenos, como comentários
bruscos ou pequenos menosprezos, são ignorados, as consequências podem ser
sérias para os funcionários individualmente e para a empresa como um todo.
"O terreno fértil para os tipos mais sérios de assédio
e bullying é o comportamento inadequado de baixo nível, que muitas vezes
poderia ser simplesmente eliminado", afirma Suff. "E, se o bullying
não for combatido, é como uma ferida que se alastra. Ele nunca fica restrito
aos indivíduos que foram sua fonte original."
"É importante que o bullying não seja considerado
apenas uma questão entre o seu autor e a vítima; é um problema coletivo",
acrescenta Ng.
Estudos indicam que as pessoas que testemunham o bullying
podem sofrer o mesmo impacto negativo sobre o seu bem-estar que as pessoas que
sofrem o assédio.
"Isso realmente afeta a motivação do grupo. As pessoas
podem ter medo de compartilhar suas opiniões, sentir-se mais estressadas e isso
pode gerar queda do desempenho e do comprometimento, o que acaba afetando a
companhia", explica Ng.
De forma geral, sabe-se que o bullying no ambiente de
trabalho causa ansiedade, depressão e piora o desempenho profissional. E ainda
"existem certas características do cyberbullying que o tornam mais
prejudicial que o bullying presencial comum", segundo Ng.
"Especialmente a disponibilidade 24 horas por dia, sete
dias por semana, e a onipresença da tecnologia e das redes sociais. Antes, você
podia sair do ambiente de trabalho e talvez sentir-se um pouco mais seguro, mas
agora essa divisão não existe mais", afirma ela.
A solução do problema
Antes da pandemia, o grupo provavelmente mais responsável
pelo bullying no ambiente de trabalho era o dos gerentes, que eram responsáveis
por 40% dos incidentes, segundo o estudo do CIPD. E, em 2021, o Workplace
Bullying Institute concluiu que o mesmo era válido para o trabalho remoto, com
os gerentes responsáveis por 47% dos relatos de bullying.
Os chefes de todos os níveis detêm enorme influência sobre o
comportamento relativo ao bullying em todas as organizações.
"Um dos principais pontos enfatizados pelas pesquisas é
o papel do líder para modelar o que é o bom comportamento", afirma Ng. Sem
um forte exemplo de liderança inclusiva, "os funcionários podem ter a
sensação de que comportamentos de bullying podem passar impunes ou ser
aceitáveis".
Além dos gerentes, é obrigação das empresas garantir que
tenham estruturas estabelecidas para lidar com o bullying remoto, incluindo
processos claros para que os funcionários relatem incidentes com a garantia de
que eles serão adequadamente tratados —especialmente quando os gerentes são os
responsáveis pelo bullying.
Isso exige abordagem proativa e, em muitos casos,
compreensão mais profunda das formas sutis de manifestação do bullying remoto.
Para os funcionários remotos presos em ambientes de trabalho
onde o bullying é um problema, uma opção é levar a questão para o RH,
especialmente se for cometido por um chefe.
É preciso coragem para falar sobre o problema, mas Priyanka
Sharma aconselha as pessoas a fazer isso o mais cedo possível, "para que
os assuntos possam ser tratados com sentido de urgência, sem causar impacto ao
seu bem-estar mental de longo prazo".
E as pessoas que denunciam o bullying no trabalho remoto
podem também fazer algo que as vítimas presenciais muitas vezes não conseguem:
fornecer provas como mensagens, emails e logs de chamadas.
"O bullying é um comportamento repetitivo e, se você
puder mostrar que a experiência é frequente, você tem um argumento mais
forte", afirma Kara Ng. "Uma das principais diferenças entre o
ciberbullying e o bullying tradicional é que normalmente existe um rastro de
provas."
Fonte e Foto: Folha de São Paulo
UGT - União Geral dos Trabalhadores