11/07/2022
A Sexta Turma do Tribunal Superior do Trabalho decidiu, por
unanimidade, manter a condenação de uma ex-professora e de suas duas filhas ao
pagamento de indenização de R$ 1 milhão a uma empregada doméstica que, durante
26 anos, foi submetida a condições degradantes de trabalho, análogas à
escravidão. Ela teve de trabalhar desde os sete anos de idade sem ter tido a
oportunidade de estudar. Ao negar o recurso de revista das empregadoras, o
colegiado determinou a expedição de ofício ao Ministério Público Federal para
que investigue o caso.
“Futuro promissor”
Na reclamação trabalhista, a trabalhadora disse que, aos
sete anos de idade, foi levada de Curitiba (PR) para morar na casa da patroa,
em São Paulo (SP), sob a falsa promessa de ser integrada à família, que daria a
ela a oportunidade de um futuro promissor e de um lar. Entretanto, ela foi
privada de brincar e de estudar e obrigada a fazer faxina, lavar roupas,
preparar as refeições, cuidar dos animais de estimação, servir de babá das
filhas e, mais tarde, de cuidadora do casal, trocando fralda geriátrica, as
roupas de cama e ministrando medicação.
Colchão no banheiro
Ainda de acordo com a ação, em todo o período, nunca dispôs
de condições dignas: dormiu num colchão no chão no banheiro dos fundos da
residência, no chão de um dormitório, quando cuidava do esposo da patroa, com
Alzheimer, e, por seis anos, na área de serviço, sujeita a água de chuva e
ventos.
Descontos
Dos sete aos 11 anos, disse que trabalhou sem nenhum
direito, e somente aos 18 anos teve a carteira de trabalho anotada com um
salário que não recebia integralmente, pois eram descontados todos os produtos
usados por ela e até mesmo o valor de multas por não ter ido votar, sendo que
nunca a deixaram exercer esse direito.
Trancafiada
Segundo sua descrição, ela só podia sair de casa para
acompanhar a patroa ao supermercado ou a consultas médicas. Fora dessas
situações, as portas eram trancafiadas. Em 2016, 26 anos depois de ter sido
levada para a família, conseguiu escapar e retomar a sua liberdade.
Trabalho proibido
O juízo da 88ª Vara do Trabalho de São Paulo (SP) condenou a
professora e as filhas ao pagamento de R$ 150 mil por danos morais, por
entender que não houve adoção, mas admissão de menor em trabalho proibido. Mas,
segundo a sentença, apesar de grave, a situação não caracterizava trabalho
análogo à escravidão.
R$ 1 milhão
O Tribunal Regional do Trabalho, no entanto, majorou a
condenação para R$ 1 milhão, a ser pago em 254 parcelas mensais (ou seja, por
cerca de 21 anos), atualizadas monetariamente. Para o TRT, a empregada esteve
submetida a situações degradantes de trabalho, em condições análogas à
escravidão, sem receber salário em espécie, privada de instrução formal, com
sua mão de obra utilizada desde os sete anos em serviços notadamente
inadequados para menores, além de ter sido privada de sua liberdade.
“Parte da família”
Inconformadas com a condenação, a patroa e as filhas
apresentaram recurso de revista ao TST, em que argumentavam que o valor da
condenação era excessivo e não condizente com a realidade. Na sessão de
julgamento, a defesa sustentou que a empregada “fazia parte da família” e tinha
dormitório próprio, carteira assinada e plano de saúde.
Privada de educação
Em contraponto, o advogado da empregada sustentou que a tese
da defesa era inverídica e que não se poderia presumir que ela pertencia à
família, diante da constatação de que dormia no sofá da sala e, durante muitos
anos, em colchões no chão. Outro ponto salientado foi o de que ela fora privada
de educação: enquanto as filhas do casal têm nível superior, a empregada é
analfabeta.
Situação grave
Para o relator, ministro Augusto César, a situação é grave.
“A empregada foi levada aos sete anos de idade e, durante quase 30 anos, não
frequentou escolas e, em parte deles, não recebeu nada pelos serviços
domésticos que realizava”, afirmou.
O ministro observou que as provas evidenciaram a prática de
trabalho infantil e de situação degradante de trabalho e considerou que a
indenização de R$ 1 milhão “pode servir como paliativo para as privações e o
sofrimento que marcarão a vida da trabalhadora, como sequelas que não se sabe
se algum dia se resolverão”.
Perpetuação da
pobreza
A ministra Kátia Arruda destacou que o caso deixa claro o
ciclo de perpetuação da pobreza e lembrou que os vizinhos que conheceram a
trabalhadora aos 14 anos falaram que ela era tratada como empregada doméstica.
Segundo ela, as pessoas que começam a trabalhar cedo em casas de família
permanecem nessa atividade quando adultas, porque não têm tempo de
desenvolvimento e sofrem privações físicas e emocionais.
Para a ministra, o dano não pode ser efetivamente custeado,
“porque atinge toda a vida dessa pessoa e, também, a sociedade”. O valor da
indenização, a seu ver, é proporcional, pois repõe, ao menos, os salários que
não foram pagos.
Direito de sonhar
retirado
O ministro Lelio Bentes Correa lembrou que a situação é
muito comum: as famílias, a pretexto de receber crianças e adolescentes em
situação vulnerável, acabam as submetendo a situações incompatíveis com os
primados da dignidade do ser humano. “O que se vê é nada mais do que a pura e
simples exploração, com gravíssimas consequências sociais”, asseverou.
Na sua avaliação, a empregada teve limitada sua cidadania e
“tolhido o seu direito de sonhar, de esperar algo para o futuro”. Lelio Bentes
lembrou que o trabalho doméstico é uma das mais perversas formas de trabalho
infantil, em razão dos danos psicológicos, da exposição a riscos físicos, do
assédio e do risco de acidentes. “O caso analisado trata justamente de trabalho
infantil e análogo a escravidão, o que contraria a Convenção 29 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT)”, concluiu.
Fonte e Foto: Mundo Sindica
UGT - União Geral dos Trabalhadores