21/03/2022
TST afirma que vai recomendar aos tribunais regionais
medidas de fiscalização de empresas por mais inclusão; acesso hoje é por meio
de convênios e parcerias
Pessoas com síndrome de Down estão cada vez mais ocupando
espaços sociais e exercendo cidadania. O serviço público, contudo, ainda patina
na inclusão efetiva desses brasileiros que não conseguem ocupar cargos em
administrações governamentais, em nenhuma esfera, mesmo amparados pela
Constituição.
Levantamento feito por grupos de apoio a pessoas com Down
espalhados pelo Brasil e compartilhado com a Folha não encontrou servidores
públicos concursados com deficiência intelectual, incluindo Downs, em nenhum
Estado. As portas de entrada nas gestões de governo, em geral, são apenas
temporárias e improvisadas, com apoio de organizações filantrópicas ou
assistenciais por meio de convênios e parcerias.
Questionado sobre o tema, o TST (Tribunal Superior do
Trabalho) reagiu à apuração e informou que vai editar ato, nos próximos dias,
recomendando a todos os Tribunais Regionais do Trabalho a "adoção de ações
e medidas de fiscalização de empresas terceirizadas para que, no cumprimento
das cotas de contratação de pessoas com deficiência, incluam pessoas com
síndrome de Down".
O tribunal, que reconheceu o quadro atual de exclusão,
inclusive em sua estrutura, afirmou ainda que "abrirá suas portas ao
diálogo com entidades que abordam a causa para avaliar novas iniciativas que
ampliem as ações de inclusão".
Grupo de pessoas com deficiência intelectual cuida do
viveiro da Prefeitura de Campinas. Na foto, os estagiários Luan Almeida, 20
anos (à esq.), Adenilson Ferreira dos Santos, 24 (ao centro), e João Marcos
Gonçalves Ribeiro, 25, que têm síndrome de Down - Karime Xavier/Folhapress
Nesta segunda-feira (21), é celebrado o Dia Internacional da
Síndrome de Down e uma das demandas mais urgentes dos grupos de pessoas com
deficiência intelectual é justamente mais acesso ao emprego. Atualmente, isso
tem acontecido com mais efetividade em programas segmentados tanto no setor
público quanto no privado, que estão espalhados pelo Brasil.
O cardiologista José Francisco Kerr Saraiva, presidente da
Fundação Síndrome de Down de Campinas, explica que essas pessoas podem
conquistar empregos com autonomia monitorada para haver equidade. O médico
lembra que apesar de os concursos públicos não incluírem pessoas com
deficiências intelectuais, existe o olhar mais contemporâneo para a inclusão do
Down.
"É uma luta constante para promover igualdade. Antes
essas pessoas nasciam e morriam, muitas vezes, sem desenvolver autonomia,
apesar de terem assistência. Era a inclusão excludente. Não havia integração
com a sociedade."
Saraiva prossegue. "Essas ações de inclusão são
recentes e têm contribuído para o ingresso dessas pessoas no mercado de
trabalho. Mas para essa inclusão chegar ao serviço público, ainda há um longo
caminho a se trilhar."
Em Campinas, uma parceria entre a Sanasa (Sociedade de
Abastecimento de Água e Saneamento), a Apae (Associação de Pais e Amigos dos
Excepcionais) da cidade e o Departamento de Parques e Jardins, da Prefeitura de
Campinas (SP) –, permitiu a contratação de três pessoas com síndrome de Down
para trabalhar no viveiro municipal da cidade.
Luan Almeida, 20, Adenilson Ferreira dos Santos, 24, e João
Marcos Gonçalves Ribeiro, 25, ao lado de outras 25 pessoas com deficiência
intelectual, são responsáveis pelo cultivo de mudas de flores que, depois, são
espalhadas por parques, canteiros centrais e bosques de Campinas. Cada um deles
recebe um salário mínimo por mês (R$ 1.212).
"Aprendi bastante nesses quatro anos, desenvolvi muitas
habilidades. Já estou craque em jardinagem, tanto que também cuido até das
plantas lá de casa. É bom ter responsabilidades, gosto dessa rotina de
trabalho", afirma Adenilson.
Trabalhar e ter uma rotina ajuda as pessoas com deficiência
a ter noção tanto dos seus direitos como dos seus deveres, segundo a
fisioterapeuta e pedagoga Ana Paula D. Binoto, 43, coordenadora do programa
Treinamento Profissional de Campinas, da Apae.
"O objetivo é que eles adquiram habilidades específicas
para sua inclusão no mercado de trabalho. Eles ganham independência, autonomia
e empoderamento, mas, em especial, igualdade de oportunidades."
O desembargador Alvaro Nôga, presidente da Comissão
Permanente de Acessibilidade e Inclusão do TRT-2 (Tribunal Regional do Trabalho
da 2ª Região), de São Paulo, reconhece que falta um mecanismo que possibilite o
ingresso de pessoas com deficiência intelectual no serviço público.
"Não existe, ainda, norma para exigir prova acessível
para eles ficarem em pé de igualdade com os demais competidores, em todos os
cargos, o que considero uma injustiça. É como se pessoas com deficiência
intelectual ficassem fora da festa", afirma.
Atualmente, ele lembra, só é possível ingressar no serviço
público por meio de concurso. "Temos uma preocupação em não tratar esse
público de forma diferenciada, mas, sim, com respeito. É preciso compreender
que para haver igualdade, nesses casos, precisa haver flexibilização."
A advogada Daniela Kovács, funcionária do TRT-SP e membro da
Comissão de Acessibilidade do órgão, que tem uma deficiência visual, afirma que
o concurso público é uma barreira para pessoas com deficiência intelectual.
"A prova exige várias habilidades como forma de
raciocínio, e muitas vezes isso pode prejudicar alguém com Down, por exemplo,
que precisa de uma comunicação simplificada."
A Constituição de 1988 já previa a inclusão de pessoas com
deficiência nos serviços públicos, mas de maneira genérica. A lei 8.112/90
estabelece o percentual máximo de 20% para reserva de cargos públicos, mas os
órgãos têm reservado o mínimo de 5%, segundo Daniela.
A legislação deve ser mais clara e específica, segundo a
presidente da Associação Reviver Down do Paraná, Regiane Gimenez Mendonça, que
tem uma filha de 26 anos com a síndrome. Ela explica que nas empresas privadas,
as cotas são preenchidas por pessoas com deficiência física, e não intelectual.
"Para cumprir a cota, contratam pessoas que se adaptam
mais às vagas e acabam rejeitando deficientes intelectuais, que precisam que os
cargos sejam adaptados a eles, que é o emprego apoiado. Toda pessoa é capaz de
aprender e de trabalhar", diz.
Ela afirma que concursos públicos poderiam, por exemplo,
oferecer vagas administrativas a esse público, em trabalhos como auxiliar,
escrituração e até mesmo professores.
O empreendedor social Maurício Carvalho concorda. Ele
questiona, ainda, a falta de cargos inclusivos disponíveis no setor público
para deficientes intelectuais. Ele, que completa 59 anos justamente em 21 de
março, é pai do Rafael, 25, que tem síndrome de Down e foi o primeiro nessa
condição a completar a corrida de São Silvestre, em São Paulo.
"Meu filho é palestrante e comunicativo, poderia atuar
em diversas funções no setor público e privado. É preciso sempre respeitar a
vontade do Down. Muitos querem entrar para o serviço público porque é tradição
de família, outros simplesmente querem entrar pela porta da frente por meio de
concurso. Isso não é favor, é um dever do Estado."
De acordo com o presidente da Federação Brasileira das
Associações de Síndrome de Down, Antonio Carlos Sestaro, apesar dos avanços nos
últimos anos para a inclusão desse público no mercado de trabalho, o setor
público ainda descumpre a Lei das Cotas.
"O governo não faz sua parte, já que não há concursado
com Down trabalhando no setor público. A inclusão de uma prova mais acessível,
com linguagem simplificada para garantir a interpretação de quem tem a
síndrome, e até mais tempo para realizar o exame, é o que vai garantir a
igualdade. Isso pode ser o primeiro passo para avançarmos nessa questão de
acessibilidade do Down."
O desembargador Nôga declara que "há a expectativa que
as coisas mudem. Dentro da Justiça do Trabalho existe essa intenção. É provável
que venha a acontecer de deficientes intelectuais competirem por uma vaga no
serviço público por meio de uma prova em concurso. Pequenas lutas viram
verdadeiras batalhas. Então, estamos trabalhando para isso, de maneira que eles
sejam incluídos, não só na área judicial."
Estimativas de entidades ligadas à causa da deficiência
intelectual são de que o Brasil tem cerca de 300 mil pessoas com síndrome de
Down.
Fonte: Folha de São Paulo
Fotos: Karime Xavier/ Folhapress
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