17/03/2022
Pesquisa inédita indica que, mesmo a cerca de 300km dos
garimpos ilegais do rio Tapajós, mais da metade dos moradores da zona urbana de
Santarém apresenta níveis de contaminação por mercúrio até quatro vezes
superior ao limite recomendado pela OMS. Entre os ribeirinhos, a contaminação
chega a 90%.
O consumo de pescados contaminados pelos garimpos ilegais,
do alto e médio rio Tapajós, é apontado como origem da presença de altos
índices de mercúrio no sangue da população de cerca de 306 mil habitantes do
município de Santarém, no Pará. É o que revela o artigo publicado em 28 de
fevereiro no International Journal of Environmental Research and Public Health.
O estudo, realizado pela Universidade Federal do Oeste do
Pará (Ufopa) em parceria com a Fiocruz e o WWF, coletou o sangue de 462 pessoas
entre 2015 e 2019 e concluiu que todos os participantes da pesquisa apresentam
níveis elevados de mercúrio no sangue, sendo que 75,6% deles apresentaram
concentrações do metal acima do limite de 10 μg/L (microgramas por litro)
recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). A média da concentração na
população santarena é quase quatro vezes superior ao limite seguro da OMS.
A estudante de nutrição Larissa Neves, moradora da cidade,
se surpreendeu com a pesquisa. “Eu sabia que a água estava contaminada, porque
sempre que me banho no Tapajós fico com coceira no corpo, mas eu não tinha me
tocado da contaminação dos peixes”, afirma.
A estudante trabalha com a venda de marmitas e afirma que
seria difícil reduzir o consumo praticamente diário de peixes. “Todo domingo na
minha casa é sagrado peixe assado, porque meu pai pesca, leva peixe para casa e
a gente prepara nas marmitas pelo menos outras duas vezes por semana, não tem
como eu deixar de comer”, pondera.
Dos participantes do estudo, 203 são moradores da área
urbana de Santarém e 259 vivem em oito comunidades ribeirinhas do município
paraense, sete delas localizadas nas margens do rio Tapajós e uma nas margens
do rio Amazonas. Entre a população ribeirinha, a alta exposição de mercúrio,
usado na separação de ouro pelos garimpos ilegais, chega a mais de 90%.
Mapa com a localização do centro urbano de Santarém e as 8
comunidades ribeirinhas que participaram do estudo.
Outros estudos já tinham apontado a contaminação por
mercúrio de populações que vivem às margens do Tapajós, como o povo indígena
Munduruku, que nos últimos anos vêm travando uma crescente disputa contra
garimpos clandestinos em seu território. Agora, a pesquisa Mercury
Contamination: A Growing Threat to Riverine and Urban Communities in the
Brazilian Amazon (em livre tradução, Contaminação por mercúrio: uma ameaça
crescente para comunidades ribeirinhas e urbanas na Amazônia brasileira),
apresenta dados da contaminação que atinge também a população no centro urbano,
a mais de 300km da região onde há concentração de garimpos.
A investigação conclui que 57,1% dos participantes moradores
da área urbana de Santarém apresentam taxas de mercúrio no sangue acima do
considerado seguro pela OMS, e que a exposição ao mercúrio não se restringe às
áreas dos garimpos, “mas pode ocorrer em grande parte da bacia hidrográfica que
é bastante impactada pela atividade garimpeira”.
Participantes da pesquisa que declararam consumo diário de
pescados apresentaram maiores taxas de mercúrio no sangue. Os dados indicam que
este hábito alimentar está relacionado a diferentes marcadores sociais, como
local de residência e escolaridade. O maior nível de mercúrio foi detectado no
grupo de analfabetos (45,8 a 50,9 μg/L) e o menor entre os com ensino superior
(17,3 a 31,6 μg/L).
Segundo o artigo, a dependência dos pescados e falta de
acesso a outras variedades de proteína, acentuada pela crise econômica e social
desencadeada pela pandemia, além da preferência cultural por esse consumo, é um
fator de maior vulnerabilidade para a contaminação.
Homens apresentaram maiores concentrações de mercúrio do que
mulheres, e participantes com idade entre 41 e 60 anos apresentaram níveis mais
elevados do que o grupo mais jovem, composto por pessoas entre 21 e 40 anos.
A prevalência da exposição ao mercúrio também é maior entre
os ribeirinhos que vivem às margens do rio Tapajós (59,5%) em comparação aos
moradores da margem do rio Amazonas (40,5%).
“Independentemente do local de residência, a exposição
humana ao mercúrio pode ocorrer, pois depende dos hábitos alimentares, mas
também das próprias características individuais”, explica Heloisa do Nascimento
Moura Menezes, pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde
da Ufopa e coordenadora do estudo. “Todos aqueles que têm o hábito de consumir
peixe frequentemente estão sob risco de exposição ao mercúrio”, completa.
De acordo com a pesquisadora, alguns participantes que vivem
na região urbana do município apresentam índices tão altos quanto os das
populações ribeirinhas e o crescimento desenfreado da atividade garimpeira pode
piorar este quadro.
O artigo explica que o uso “generalizado, não regulamentado
e descontrolado” do mercúrio na atividade garimpeira já liberou milhares de
toneladas de resíduos contendo o metal tóxico no bioma amazônico. “Na Amazônia
brasileira, o garimpo foi considerado responsável pela contaminação ambiental,
bem como pela exposição da vida selvagem e humana ao longo dos anos; no
entanto, a magnitude da exposição permanece incerta devido à ilegalidade do
setor, dificultando dados credíveis sobre a quantidade de mercúrio liberada no
ambiente”.
Riscos para a saúde
A pesquisa avaliou também alterações nos indicadores de
saúde. O mercúrio é um metal pesado tóxico, frequentemente associado a danos
nos tecidos e deficiências na saúde mental, além de alterações comportamentais,
imunológicas, hormonais e reprodutivas. Alterações nos rins e nos fígados foram
registradas entre os participantes santarenos, sendo que marcadores mais altos
foram registrados segundo a concentração de mercúrio.
Segundo a coordenadora do estudo, a literatura científica
sobre a contaminação por mercúrio mostra que, em geral, pessoas com níveis mais
altos do metal apresentam sintomas mais graves, mas sintomas são observados
também desde níveis baixos de contaminação. “Por isso é importante identificar
precocemente a exposição ao mercúrio, para que os sintomas não se agravem”,
pondera.
Segundo o médico Fábio Tozzi, coordenador do Programa Saúde
Comunitária do Projeto Saúde e Alegria (PSA) em Santarém, estão aparecendo cada
vez mais pacientes que trabalham em garimpo ou que sofrem diretamente as
consequências do uso do mercúrio na atividade, apresentando sintomas
neurológicos, digestivos, psiquiátricos e respiratórios. No entanto, segundo
ele, a contaminação por mercúrio ainda é uma doença muito subnotificada. “O
diagnóstico é pouco utilizado, mas pela grande quantidade de garimpos da região
isso começa sim a ser um alerta muito grande e o sistema de saúde precisa ter
resposta para as populações”.
Incluir a testagem dos níveis de mercúrio nos exames da
atenção básica de saúde é uma medida apontada pelo médico para enfrentar o
problema. “Os gestores devem estar preparados para identificar e mitigar os
efeitos da presença do mercúrio na água e nos peixes”, afirma Tozzi, que atua
no desenvolvimento de modelos de atenção básica para populações ribeirinhas em
uma parceria entre o PSA, a Ufopa e a Secretaria Municipal de Saúde de
Santarém.
Impacto socioeconômico
Diante dos resultados da pesquisa, os vendedores de peixes
no Mercadão 2000, localizado na orla de Santarém, se apressam para afirmar que
seus peixes não estão contaminados. “Esse peixe aqui é de criação, não é do rio
não”, afirmou o vendedor Valdenir da Silva Lima, enquanto limpava um tambaqui.
Ele destaca os impactos econômicos que o setor teve com a preocupação da
população santarena em relação à doença da “urina preta”, nome popular da
Doença de Haff, que no segundo semestre de 2021 foi relacionada a uma toxina
presente nos peixes. “Atrapalhou muito, ficamos quase um mês vendendo pouco”,
revela.
Outro vendedor, que preferiu não se identificar mas revela
ser um dos mais antigos do mercado, afirma que seus peixes vêm dos lagos da
várzea do rio Amazonas e também lembra os impactos das notícias sobre a “urina
preta”. “Acabou para nós aqui, tivemos que jogar um monte de peixe fora,
doamos, agora que estamos voltando a vender”.
O motorista particular Ninito José Miranda de Souza tinha
acabado de comprar uma peça de pirarucu, quando conversou com a reportagem. “Se
tiver, eu como peixe o dia inteiro”, revela. No entanto, com o resultado da
pesquisa, ele afirma que irá reduzir o consumo. “Vou ter que dar um tempo, se
tá fazendo mal não posso ficar no erro”.
Já a aposentada Noêmia Pereira Duarte, natural de Itaituba
(PA) e moradora da vila santarena de Alter do Chão, que também saía da feira do
pescado após comprar pacu e acará, desconfia da pesquisa. “Toda a vida eu
comprei peixe, não tem mercúrio nenhum, isso é mentira”, afirma.
A pesquisadora Heloisa do Nascimento Moura Menezes afirma
que o estudo não tem como objetivo trazer impacto negativo para pescadores e
feirantes. “Somos solidários a todos aqueles que direta ou indiretamente
dependem da pesca. Não estou aqui para criar alarde, mas sim para trazer à tona
uma discussão necessária e urgente”, explica.
Segundo Menezes, o resultado não indica que a população deva
deixar de consumir peixe, uma vez que existem formas alternativas de se reduzir
a exposição ao mercúrio. “Nossa recomendação não é restringir o consumo de
peixes, o que sugerimos é uma mudança de hábitos alimentares, justamente porque
temos a preocupação com todos aqueles que dependem da pesca para sobreviver”,
explica.
De acordo com a pesquisadora, a população pode variar o tipo
de peixe consumido, uma vez que alguns peixes, como os carnívoros, têm mais
mercúrio do que os demais, reduzir as porções consumidas e a frequência de
consumo e introduzir mais frutas, legumes e alimentos antioxidantes na
alimentação. “O conhecimento é uma ferramenta preciosa quando se pensa em
prevenção”, completa.
Menezes aponta também que o objetivo do estudo é promover
uma discussão sobre práticas mais sustentáveis para redução do mercúrio no
ambiente. “A redução da contaminação do rio e dos peixes pode levar anos,
portanto, precisamos não só acabar com as atividades que liberam mercúrio no
ambiente, como também buscar formas de proteger a saúde das populações que
vivem na região amazônica e que ainda irão conviver por muitos anos com as consequências
da exposição mercurial existente hoje”, conclui.
Desde que a fase de coleta das amostragens da pesquisa foi
concluída, em 2019, o garimpo ilegal no rio Tapajós cresceu significativamente.
De acordo com um levantamento do Instituto Socioambiental, apenas entre janeiro
de 2019 e maio de 2021, a área devastada pelo garimpo dentro da Terra Indígena
Munduruku, localizada no médio Tapajós, cresceu em 363%.
Fonte e Foto: Infoamazônia
UGT - União Geral dos Trabalhadores