17/03/2022
De 0 a 10, iFood e 99 levam nota 2, Uber, 1, e Rappi e Uber
Eats, zero. Remuneração e condições de trabalho estão entre piores do mundo.
Aos 52 anos e pai de uma filha, Pedro fez do Uber sua
principal fonte de renda. Ele passa até 12 horas por dia no carro. As pausas
são controladas: “Eu tenho metas. Se eu não trabalhar, não sou pago”, diz. Sem
saber como funcionam os algoritmos que ditam os preços, ele fica refém do que a
plataforma impõe. É obrigado a aceitar as promoções e impedido de cancelar
corridas, mesmo que os passageiros se recusem a usar máscara ou colocar os
cintos de segurança. “A Uber se comporta como se o carro fosse deles. Mas é
meu”, ele declarou.
Os problemas de Pedro com a Uber são crônicos – e, agora,
quantificáveis. A empresa tirou nota 1 na primeira avaliação feita no Brasil
dos pesquisadores do projeto Fairwork, que estabeleceram cinco critérios de
“trabalho decente” para avaliar o funcionamento das empresas que operam na
chamada “economia de plataforma”, caso de Uber, iFood, 99 e outras. O relatório
inédito, lançado hoje, dá uma nota de 0 a 10 para critérios como salário,
condições de trabalho e transparência. Pedro foi um dos entrevistados pelos
pesquisadores.
Nessa edição do relatório, a primeira feita no Brasil, foram
avaliadas seis empresas – e a nota máxima foi 2, colocando o país entre os
piores lugares do mundo para os trabalhadores de plataformas.
Rappi, GetNinjas e Uber Eats zeraram – isso significa que
não pontuaram absolutamente nada nos critérios de “trabalho decente”. O Uber
atingiu a mísera nota 1. O iFood e a 99, as empresas melhor avaliadas,
conseguiram uma risível nota 2 – e isso depois de se movimentarem, ao saberem
da existência do ranking, para cumprir alguns dos critérios levantados pelos
pesquisadores.
O projeto Fairwork foi criado por pesquisadores da
Universidade de Oxford, no Reino Unido, e da WZB Berlin Social Science Centre,
da Alemanha. No Brasil, é liderado por Rafael Grohmann e outros pesquisadores
do Digilabour, grupo de pesquisa ligado à Unisinos. O projeto avalia as
empresas que operam no capitalismo de plataforma em cinco critérios diferentes.
O primeiro é a remuneração justa: os trabalhadores devem ser pagos de forma
decente, respeitando os salários mínimos e o custo de vida local. O segundo é
sobre as condições de trabalho, como riscos à saúde e segurança. Depois,
contratos justos: os termos e condições devem ser acessíveis e compreensíveis.
Há também o critério de gerenciamento justo – ou seja,
trabalhadores devem ser ouvidos e informados sobre as decisões. O uso de
algoritmos deve ser transparente, assim como os outros processos de inclusão ou
desligamento. Por fim, há o critério de representação: os trabalhadores
precisam ser ouvidos, inclusive através de organizações coletivas que devem
ganhar o poder de negociar com as empresas.
Não é preciso muito esforço para saber porque as empresas se
saíram tão mal no Brasil.
O mínimo do mínimo
No primeiro critério, sobre a remuneração, só uma das
empresas analisadas conseguiu comprovar que garante o pagamento de um salário
mínimo (R$ 1.212 hoje) aos trabalhadores: a 99. As outras não têm nenhuma base
mínima de ganhos aos entregadores e prestadores de serviços.
Políticas de assistência à saúde e acidentes e oferta de
equipamentos de proteção garantiram à Uber e à 99 a pontuação mínima no
critério de condições de trabalho. Nas demais plataformas, os pesquisadores
constataram que, além da dificuldade em conseguir equipamento de proteção,
também há falta de infraestrutura básica como banheiros, áreas de descanso e
água potável. Também há riscos de acidentes e saúde, estresse e problemas
psicológicos.
A forma como os trabalhadores são contratados mostrou
problemas em todas as plataformas analisadas. Em um primeiro momento, nenhuma
delas tinha linguagem compreensível e acessível nos contratos. O iFood, após
ser contatado pelos pesquisadores, alterou seus termos e condições, usando
palavras mais acessíveis, conseguindo uma pontuação mínima.
Uma das maiores dificuldades, no entanto, é o gerenciamento
– um dos maiores problemas da área no Brasil, segundo os pesquisadores. Nenhuma
plataforma oferece canal de comunicação, transparência em casos de cancelamento
e políticas antidiscriminação. É o caso dos motoristas que têm suas contas
banidas e não são avisados, por exemplo. Além disso, as plataformas não
oferecem uma pessoa – mas apenas robôs e mensagens automatizadas – para
dialogar com os trabalhadores.
Um dos piores do mundo
Apesar de não terem o salário mínimo garantido, no Brasil
trabalhadores de plataformas costumam trabalhar mais de 44 horas semanais,
segundo o relatório. O controle da carga horária é feito de forma automatizada,
com algoritmos, que também definem a remuneração seguindo critérios que
raramente são transparentes. Mas, para os pesquisadores, o uso de robôs não
tira a responsabilidade das empresas sobre os prestadores de serviço. “O
controle algorítmico sobre os trabalhadores pode ser reconhecido como
equivalente ao controle exercido por um superior imediato”, escreveram os
pesquisadores. Além disso, para eles, há indicadores nas leis trabalhistas de
que muitos trabalhadores de plataformas poderiam, na verdade, ser
caracterizados como empregados.
A Justiça do Trabalho, no entanto, tem um entendimento
diferente. Uma pesquisa de 2020, feita com 432 decisões judiciais, mostrou que
só 42% delas foram favoráveis aos trabalhadores. “As plataformas digitais têm
usado estatísticas judiciais para prevenir a formação de precedentes adversos
que confirmem o status de empregados dos trabalhadores de plataformas”,
escreveram os pesquisadores.
A Fairwork já fez análises semelhantes em 26 países. Segundo
a organização, os resultados brasileiros são semelhantes à de outros países
latino-americanos, como Colômbia e Chile, mas bem piores do que em outros
continentes. Países norte-americanos, europeus e africanos têm empresas que
atingiram a pontuação máxima, o que mostra que não são metas impossíveis de
serem alcançadas.
“É uma situação que vemos em vários países da América
Latina. As plataformas de delivery normalmente têm pontuação baixa quando trabalham
com prestadores de serviço independentes, pagos por entrega”, me disse Tatiana
López Ayala, pesquisadora da Fairwork no WZB Berlin Social Science Centre.
Na Alemanha, organização de trabalhadores fez surgirem leis
que forçaram empresas a fornecer bicicletas, casacos e até internet móvel.
Segundo ela, os resultados são piores justamente em locais a
prestação de serviço é feita por independentes, como no Brasil. Nesses casos,
os trabalhadores não recebem nenhum tipo de equipamento, usam as próprias bicicletas,
motos e carros no serviço e precisam cobrir todos os custos relacionados a ele.
“Mesmo se ganham mais de um salário mínimo, especialmente quando trabalham
muitas horas, é muito inseguro. Porque em um mês podem ganhar mais de um
salário, mas no mês seguinte têm menos pedidos, ou custos são mais altos, como
por exemplo com a gasolina, e não atingem o mínimo”.
Na Alemanha, por exemplo, a situação é diferente. Lá,
empresas adotam medidas que as fazem chegar até a nota 9 no ranking. “A maioria
dos trabalhadores têm um contrato regular, recebe férias e tem garantia de que
receberá pelo menos um salário mínimo, mesmo que não tenha muitos pedidos”, me
disse Ayala.
A principal razão, para a pesquisadora, não está apenas na regulação
mas, principalmente, na organização e consequente pressão dos trabalhadores.
“Na Alemanha houve vários processos trabalhistas, pressionaram as plataformas e
com isso surgiram leis que, por exemplo, forçaram as empresas a fornecer
material de trabalho, como bicicletas, casacos e capas de chuva”, ela explicou.
Em alguns casos, até mesmo os gastos com a internet móvel, essencial para o
trabalho, são cobertos.
Na Alemanha, além de a justiça ter estabelecido alguns
padrões mínimos em decisões trabalhistas, os motoristas e entregadores de
plataformas têm organizações fortes e poder de barganha junto às empresas. No
Brasil, por enquanto, essa realidade está longe – a pesquisadora atribui ao
clima político, mas olhar para fora pode indicar caminhos para a mudança por
aqui também. “A luta é nas ruas e nos tribunais”, afirmou Ayala.
No Brasil, segundo o relatório, algumas plataformas estão
fazendo mudanças em suas práticas baseadas em seu engajamento com a Fairwork. O
iFood, por exemplo, incluiu em seu site uma atualização sobre as políticas para
garantir uma remuneração mínima aos entregadores. O comunicado entrou no ar no
sábado, cinco dias antes de o relatório ser publicado.
Fonte: The Intercept Brasil
Ilustração: Rodrigo Bento/The Intercept Brasil; Getty Images
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