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A perigosa guerra contra as cadeias de suprimento


24/06/2020

Autossuficiência em produtos essenciais não é uma boa maneira de se preparar para crises

 

"Uma das coisas que a crise nos ensinou, senhor, é que somos perigosamente dependentes de uma cadeia mundial de suprimentos para nossos remédios, como a penicilina; nossos suprimentos médicos, como máscaras; e nosso equipamento médico, como respiradores." Foi essa a lição que Peter Navarro, um influente assessor do presidente americano Donald Trump, extraiu da crise da Covid-19 para a política comercial dos Estados Unidos.

 

Essa visão é sedutora para os protecionistas. Mas é incorreta. A lição da crise é que precisamos nos preparar melhor. Autossuficiência em “produtos essenciais” não seria uma boa maneira de atingir esse resultado. Pelo contrário: seria um erro dispendioso.

 

Ataques a cadeias de suprimento transnacionais não devem ser considerados de forma isolada. As mais recentes projeções da OMC (Organização Mundial do Comércio) indicam que o colapso no comércio internacional pode ser bem maior agora do que o que aconteceu em resposta à crise financeira de 2008.

 

Seria muito prejudicial que as autoridades respondessem ao pesado declínio nas exportações de seus países por meio de uma restrição às importações. Mas é isso que o “repatriamento” forçado das cadeias de suprimento significa. Seria mais um ataque ao comércio liberal.

 

A Covid-19 fez brotar uma onda de restrições a exportações, em lugar disso. Os produtos cobertos por essas proibições e restrições variam. Mas a maioria deles se relaciona a suprimentos médicos (máscaras e escudos, por exemplo) e farmacêuticos, e equipamentos médicos (respiradores, por exemplo).

 

Essas restrições são legais. Mas isso não as torna sábias. Em uma coleção de ensaios sobre a Covid-19 e política comercial, Richard Baldwin, do Graduate Institute de Genebra, e Simon Evenett, da Universidade de Saint Gallen, perguntam: “Governos deveriam reagir a crises de saúde, econômicas e comerciais fechando as portas de seus países? A resposta é não. Fechar as portas não ajudará na luta atual contra a Covid-19... O comércio não é parte do problema. É parte da solução”.

 

Lembre-se de que o problema não se relacionava ao comércio, e sim à falta de suprimentos. Restrições às exportações simplesmente realocam a escassez, ao transferi-la a países com menor capacidade. Uma resposta natural a essa experiência é que cada país tente se tornar autossuficiente na produção de todos os produtos que podem se provar relevantes. É isso que Navarro sugere que os Estados Unidos deveriam fazer.

 

Mas as empresas abririam mão da economia de escala, à medida que o mercado mundial se fragmentasse. A capacidade delas de investir em inovação seria reduzida. Apenas as maiores e mais avançadas economias poderiam buscar autossuficiência plausivelmente em uma gama tão ampla de tecnologias. Para todas as outras, esse caminho seria um beco sem saída.

 

O mais relevante é que a autossuficiência não é de forma alguma uma garantia de maior segurança. Em seu capítulo do livro editado por Baldwin e Evenett, Sébastien Miroudot, da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), ajuda ao estabelecer uma distinção entre “resiliência” e “robustez”. A primeira se refere à capacidade de voltar a operar normalmente depois de um desordenamento; a segunda à capacidade de manter operações durante uma crise.

 

Em uma pandemia, a segunda capacidade provavelmente é mais relevante. É necessário ter acesso a suprimentos essenciais, em uma pandemia, ainda que também seja necessário restaurar a produção caso parte dela seja desordenada.

 

A maneira óbvia de obter robustez é diversificar fornecedores em múltiplos locais. Produzir no próprio país não é garantia de robustez. Qualquer local pode ser afetado por uma pandemia, furacão, terremoto, inundação, greves, distúrbios civis ou mesmo por uma guerra. Colocar todos os ovos na mesma cesta, mesmo na cesta nacional, é arriscado.

 

Robustez no suprimento também pode ser obtida por meio de uma mistura entre uma multiplicidade de fornecedores e a manutenção de estoques de produtos essenciais. A possibilidade de importar produtos eleva o número potencial de fornecedores e possivelmente o acesso a estoques excedentes, igualmente.

 

Já a proteção concentra os riscos nacionalmente, reduz a diversidade de potenciais fornecedores e reduz a pressão competitiva e a economia de escala.

 

Até agora, as cadeias mundiais de produtos para a saúde provaram ser robustas. Miroudot apontou para a capacidade da Coreia do Sul de fornecer kits para exame da Covid-19 a todo o planeta. Ele argumenta que a capacidade do país para expandir a oferta rapidamente “requer redes internacionais, gestores habilidosos de cadeias de suprimentos, reatividade e agilidade.

 

Esse tipo de experiência simplesmente não vem da produção local e de atividades protegidas contra a competição”.

 

Assim, qual seria a política sensata? Haveria esforços nacionais e mundiais para identificar produtos essenciais em caso de diversas emergências. Em seguida, seria necessário monitorar as cadeias de suprimento e os estoques relevantes, tanto em plano nacional quanto mundialmente.

 

Para fazê-lo, seriam necessárias organizações nacionais e internacionais bem financiadas, trabalhando em paralelo com o setor privado. Isso deve ser visto como uma preocupação de segurança fundamental.

 

A pandemia afinal provou ser uma ameaça muito maior à segurança do que as ameaças militares que os governos gastam trilhões de dólares para conter.

 

No curso de um esforço como esse, países deveriam buscar identificar potenciais vulnerabilidades a suprimentos produzidos por determinados parceiros. Vulnerabilidade mútua pode ser uma fonte de estabilidade. Mas países podem considerar determinadas fontes como arriscadas demais.

 

No entanto, transferir o suprimento de volta para o próprio território não precisa ser a resposta. Outras possibilidades existem.

 

O comércio é parte vital da resposta global à pandemia, incluindo a criação e distribuição da vacina de que necessitamos. O comércio também precisa continuar a ser uma grande parte da economia mundial mais ampla. A capacidade de comerciar livremente aumenta a diversidade, e até a confiabilidade, da oferta. E também cria uma grande oportunidade.

 

A Covid-19 pode de fato reverter a integração de produção atingida nas últimas décadas. Lamentaremos profundamente caso isso aconteça.

 

Financial Times, tradução de Paulo Migliacci

 

Fonte: Folha de SP




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