07/05/2020
Banco tem exigido documentação brasileira dos estrangeiros, o que é ilegal, segundo a Defensoria Pública da União
Os últimos meses têm sido difíceis para o boliviano Raul Aruquipa, 33, que mora há cinco anos em São Paulo. Costureiro desempregado, ele recebe o Bolsa Família e diz que teve o pedido de seu auxílio emergencial negado em quatro agências da Caixa Econômica Federal.
Aruquipa diz ter uma doença neurológica, o que restringe as tarefas que pode assumir no setor da confecção e já tinha problemas financeiros antes da pandemia.
Agora, sem ter como fazer bicos, afirma ter sido despejado por não ter conseguido pagar o aluguel de um apartamento na zona leste. Passou a viver de favor na casa de uma amiga em uma comunidade no bairro da Penha.
"Fui a quatro agências diferentes da Caixa pedir o benefício de R$ 600, mas sempre me trataram mal e disseram que só poderia receber se tivesse carteira de trabalho, que eu perdi. Não posso tirar uma nova porque está tudo fechado por causa do coronavírus. Apresentei documentos bolivianos na Caixa, mas não aceitaram", afirma.
Aplicativo de auxílio emergencial da Caixa Econômica Federal - Gabriel Cabral/Folhapress
Segundo a DPU (Defensoria Pública da União), há vários casos com o de Aruquipa, e eles contrariam a lei.
A DPU afirma que os estrangeiros têm direito ao benefício e que os bancos não podem negar o pagamento se a pessoa pessoa tiver o CPF regular e ao menos um documento com foto, ainda que emitido por outro país e fora da validade.
O órgão ajuizou uma ação civil pública contra a Caixa Econômica Federal e o BC (Banco Central) na última segunda-feira (6). "Uma quantidade significativa de imigrantes está potencialmente alijada do direito por questões puramente operacionais, derivadas da insuficiente normatização" pelo banco, diz o texto.
A exigência de regularidade migratória e de documentos com foto emitidos no Brasil para o pagamento dos valores contraria a legislação, segundo o defensor João Chaves, um dos autores da ação civil pública.
"A assistência social é um direito também dos imigrantes, e existe uma normativa do próprio Banco Central que diz que passaportes ou cédulas de identidade de outros países devem ser aceitos pelos bancos brasileiros", afirma.
Na ação, a DPU requer que os bancos aceitem também documentos com prazo de validade vencido durante a pandemia, tendo em vista que órgãos públicos como a Polícia Federal suspenderam a emissão de documentos.
"O acesso ao auxílio não pode ser dificultado com a justificativa de que o documento está vencido, sem foto ou mesmo porque não tem documento brasileiro. A PF não tem emitido vistos e passaportes, por exemplo, e prorrogou os prazos de validade de documentos que venceram", diz o defensor público João Paulo Dorini, também autor do processo.
Há falta de padronização nas exigências para o pagamento a imigrantes nas agências da Caixa, segundo ele. Algumas agências que aceitam o protocolo de pedido de refúgio. Outras pedem carteira de trabalho do imigrante ou CRNM (Carteira de Registro Nacional Migratório).
Procurada, a Caixa Econômica Federal não se manifestou até a conclusão deste texto, nem respondeu questionamentos da Folha sobre o número de imigrantes que tiveram o auxílio negado pela Caixa por falta de documentos.
O Banco Central, do qual a DPU requer que exija que o pagamento seja feito a imigrantes, afirmou que não comenta ações judiciais.
A DPU chegou a emitir, no dia 16 de abril, um ofício a todos os gerentes de agências da Caixa em que os orienta a fazer o pagamento do auxílio a imigrantes mediante a apresentação de documentos de identificação brasileiros, ainda que estejam com prazo de validade expirado, ou de documentos de seus países de origem.
A estudante angolana Ana Aniesse, 20, fez périplo para solicitar o benefício. Primeiro, chegou a levar o ofício da Defensoria a uma agência da Caixa onde mora, em Duque de Caxias (RJ), mas ainda assim seu pedido para receber o auxílio foi negado.
Ela mora com o filho de nove meses e o marido congolês, que segundo ela está sem renda porque trabalha em uma loja de hortifrútis fechada em razão da quarentena no estado.
"Estou no CadÚnico, mas não recebi nada e fui no dia 24 de abril para a agência. A atendente disse que eu não poderia nem entrar no banco por não ter um documento válido e minha carteira de trabalho de imigrante expirou. Ela não aceitou meu passaporte".
Insistente, Ana conseguiu um novo ofício da DPU que oficializava o direito ao benefício com a apresentação apenas do passaporte angolano. Ela diz ter chego à porta da agência nesta quarta-feira (6) às 6h, esperado até as 11h para ser atendida, mas que, desta vez, conseguiu receber o auxílio.
A advogada Karina Quintanilha, que integra a rede do Fórum Internacional Fontié ki Kwaze, da USP, diz que as dificuldades para o recebimento do benefício têm sido comuns.
"Aqueles imigrantes que já tinham Bolsa Família ou estavam no CadÚnico tiveram mais facilidade, mas muitos outros estão passando por problemas relacionados ao cadastro ou a documentos. O primeiro gargalo é o CPF, que muitos não têm ou estão tendo dificuldade para regularizar."
Mesmo quem teve o auxílio aprovado, quando vai a agências da Caixa não tem conseguido receber o valor. "É muito comum não aceitarem o documento que ele tem, como o protocolo de pedido de refúgio [geralmente uma folha A4 com uma foto e dados pessoais emitida pela PF]", diz ela.
"Exigir carteira de trabalho de imigrante barra o pagamento a muitos, porque em geral é um dos últimos documentos que eles conseguem no país. As agências não têm tido uma única regra sobre que documentos os estrangeiros têm de apresentar", afirma a antropóloga Marlise Rocha.
Ela acompanha casos de indígenas venezuelanos da etnia Warao que não conseguiram receber o benefício, embora tenham direito.
A consultora de moda camaronesa Louise Edimo, 73, também teve o benefício negado. Ela vive há dez anos em São Paulo.
A idosa diz que solicitou o auxílio emergencial de R$ 600 e pediu o depósito em sua conta na Caixa, mas até agora não conseguiu que o banco liberasse acesso ao benefício.
Em meio à pandemia do coronavírus, ela viu sua renda cair e afirma ter dificuldades para pagar o hotel onde vive, no centro de São Paulo. "Faço acessórios de moda e dou consultorias, mas as vendas caíram muito e as coisas ficaram complicadas. Recebo uma ajuda financeira do meu irmão, mas vou ter de me mudar porque não consigo mais pagar onde vivo hoje", diz.
Para complementar a renda, ela tem confeccionado máscaras de tecido caseiras, que ela vende à comunidade de imigrantes africanos nas ruas de São Paulo. "Ainda estou saudável, o ideal era não sair na rua, mas não tenho outra alternativa".
A demora para receber os R$ 600 tem sido "um preconceito a mais" para os imigrantes, segundo ela. "Não somos prioridade", diz.
Fonte: Folha de SP
UGT - União Geral dos Trabalhadores