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A alteração de gênero e seus reflexos na concessão da aposentadoria


20/08/2019

O texto da Reforma da Previdência recentemente aprovado nos dois turnos de votação pela Câmara dos Deputados, ainda prevê diferença etária entre homens e mulheres para a concessão do benefício de aposentadoria1. Essa diferença de tratamento, que revela a permanência na adoção do sistema binário (adoção de diferença em razão do sexo biológico) parece se justificar em uma tentativa de compensar a jornada dupla exercida pela maioria das mulheres, considerando sua atuação no mercado de trabalho e seu papel familiar.

Embora possamos questionar se benefícios previdenciários devem possuir essa perspectiva compensatória, haja vista a sua natureza de substituição da renda do trabalhador, não cabe nesta seara perquirir sobre o acerto, ou não, da decisão política adotada.

O certo é que essa diferença acarreta consequências para a concessão do benefício, diante da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal – STF, na Ação Direta de Constitucionalidade nº 4.275, que, ao interpretar o art. 58 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, asseverou que é possível a alteração do prenome constante do registro civil, sem a necessidade da cirurgia de transgenitalização ou qualquer tratamento hormonal. O ponto nodal foi a manifestação da vontade do indivíduo, a fim de adequação à sua identidade autopercebida, com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana. Para melhor esclarecimento, convém a transcrição da ementa:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL E REGISTRAL. PESSOA TRANSGÊNERO. ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO SEXO NO REGISTRO CIVIL. POSSIBILIDADE. DIREITO AO NOME, AO RECONHECIMENTO DA PERSONALIDADE JURÍDICA, À LIBERDADE PESSOAL, À HONRA E À DIGNIDADE. INEXIGIBILIDADE DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO OU DA REALIZAÇÃO DE TRATAMENTOS HORMONAIS OU PATOLOGIZANTES.

1. O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero.

2. A identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la.

3. A pessoa transgênero que comprove sua identidade de gênero dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer por autoidentificação firmada em declaração escrita desta sua vontade dispõe do direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade.

4. Ação direta julgada procedente.

Posteriormente, na decisão proferida no bojo do Recurso Extraordinário – RE nº 670.4222, o STF, conforme consta da sua página na internet3, fixou tese, especificamente com relação à pessoa transgênero, já que o pedido na ADI nº 4.275 se referiu ao transexual, nos seguintes termos:

O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, apreciando o tema 761 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário. Vencidos parcialmente os Ministros Marco Aurélio e Alexandre de Moraes. Nessa assentada, o Ministro Dias Toffoli (Relator), reajustou seu voto para adequá-lo ao que o Plenário decidiu na ADI 4.275. Em seguida, o Tribunal fixou a seguinte tese:

i) O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa;

ii) Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo ‘transgênero’;

iii) Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial;

iv) Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar de ofício ou a requerimento do interessado a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos.

Vencido o Ministro Marco Aurélio na fixação da tese. Ausentes, neste julgamento, o Ministro Gilmar Mendes, e, justificadamente, a Ministra Cármen Lúcia (Presidente). Presidiu o julgamento o Ministro Dias Toffoli (Vice-Presidente). Plenário, 15.8.2018.  

Com efeito, aos transexuais e à pessoa transgênero se permitiu o exercício da faculdade de alterar seu prenome no registro civil diretamente, utilizando-se da via administrativa4 ou judicial, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, vedada a menção a “transexual” ou a “transgênero”.

Considerando essas decisões, notadamente a proferida em sede de ADI, que, como cediço, possui efeito erga omnes e caráter vinculante, surge a indagação: a partir da decisão, prevalece a autoidentificação firmada em declaração escrita da vontade do indivíduo, que dispõe do direito fundamental subjetivo à alteração do seu prenome e da classificação de gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, há garantia do direito ao benefício de aposentadoria relativo a essa realidade?

Esse tema revela como a matéria previdenciária é ampla, complexa, e envolve o debate sobre a necessidade de políticas públicas de emprego e renda voltadas para as mulheres, a delimitação da exata função dos benefícios previdenciários, considerando a concepção de seguro social, e a ótica pluralista de sociedade prevista pela Constituição Federal de 1988.

Embora a Corte não tenha se manifestado acerca da consequência na seara previdenciária, especialmente no que tange ao custo da solução jurídica, diante da necessidade da manutenção do equilíbrio financeiro e atuarial, nos moldes dos arts. 40 e 201 da Constituição Federal, não cabe a contraposição do direito que fora concedido. O fator preponderante, não se pode olvidar, é o sentimento do indivíduo de seu sexo biológico não corresponde a sua identidade de gênero.

A despeito do reconhecimento do direito pelo STF, não parece que exista a possibilidade de sua aplicação automática, em face da legislação previdenciária.

No Brasil, não existe norma previdenciária específica destinada a quem tenha nascido sob um gênero e decida alterá-lo. Como já ressaltado, o critério legal – e do próprio texto constitucional – é o sexo biológico como requisito etário para a concessão do benefício de aposentadoria.

Assim, penso que não haja como se aplicar automaticamente o direito à aposentadoria de acordo com o gênero eventualmente escolhido. Não obstante, no âmbito previdenciário, como resolver a situação de divergência entre o sexo biológico e a identidade relativa ao gênero?

Algumas considerações devem ser sopesadas.

Em primeiro lugar, penso que haja necessidade de alteração legislativa. O caput do art. 37 da Constituição Federal consagra o princípio da legalidade estrita, que, como cediço, compele o administrador a apenas agir senão em virtude de lei. Em outras palavras, os agentes públicos, de modo geral, não possuem a liberdade conferida pelo inciso II do art. 5º da Constituição Federal aos particulares, devendo a sua conduta estar pautada precipuamente nos contornos legais.

A novel legislação teria o condão de prever situações aptas a conferir concretude ao direito, sem esquecer a necessária proteção ao sistema previdenciário. Eis alguns pontos iniciais que mereceriam, atenção do legislador:

fórmula de cálculo que considere tempo em que o indivíduo pertencia a um gênero e o tempo após a mudança.

Essa fórmula também teria o condão de permitir que o sistema se organize face o custo da decisão judicial, como forma de garantir o equilíbrio financeiro e atuarial do sistema.

Além do que, parece adequado que haja critério que considere os períodos referentes aos dois gêneros, a fim de refletir o tanto quanto possível a realidade.

Essa previsão não extrapolaria o comando normativo contido no reconhecimento de direitos pelo texto constitucional e exteriorizada na decisão do STF, na medida em que o reconhecimento de direitos àqueles que não o possuíam não pode ir além do direito de quem já os possuíam.

Para tanto, essa fórmula poderia adotar critério proporcional, em que se considerem o tempo de contribuição do período em que o indivíduo é considerado homem, assim como do período em que ele é considerado mulher. Parece, pois, razoável que se contabilize a idade e o tempo de contribuição de forma proporcional, por meio e uma conta matemática simples (regra de três) em que se alcance uma determinada quantidade de anos.

No ponto, importante registrar que benefícios já concedidos não merecem alteração, em homenagem ao princípio do tempus regit actum, que norteia o direito previdenciário, além da homenagem ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito.

Mecanismo de aferição da vida do segurado, para que se possa saber se se enquadra nessa situação, diante da impossibilidade de qualquer menção ao sexo biológico no assento do registro retificado.

Essa situação é deveras importante e tal mecanismo deve ser bem avaliado, sob pena ofensa à diretriz da decisão, que impõe que não se pode apor à margem do registro qualquer menção a transexual/ transgênero.

Não obstante, penso que não se possa apagar os dados outrora registrados nos sistemas mantidos pelos regimes próprios dos servidores públicos (RPPS) e pelo regime geral (RGPS), que hoje é o Cadastro Nacional de Informações Sociais – CNIS.

Penso que deva ser aberto campo específico, a ser preenchido pelo interessado, por ocasião da alteração de gênero. Esse campo parece necessário, a fim de que se alcance respeito ao equilíbrio financeiro e atuarial dos regimes públicos e da identidade autopercebida.

Com efeito, considerando o conceito de previdência social, que pode ser delineado a partir da ideia de seguro social, não há que se perquirir sobre o reconhecimento do direito pelos regimes oficiais de previdência (RGPS e RPPS). Aos transexuais e à pessoa transgênero é conferida a possibilidade de alteração do prenome constante do registro civil, diante da necessidade de que ele se adeque ao gênero a que ele se sente pertencente.

O legislador merece atuar para conferir segurança ao sistema e às pessoas envolvidas, a fim de que a proteção social corresponda à realidade.

 

Fonte: Jota.Info




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