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Ex-morador de rua de SP é contratado para ações de assistência social


12/03/2018

Aprendiz de marinheiro, churrasqueiro, pedreiro, estivador, atleta, letrista, microempresário, dramaturgo.

 

Aos 49 anos, Sebastião Nicomedes deu o que tinha quando o assunto é trabalho, rodando por Espírito Santo, Bahia, Alagoas, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. “Até confundo a ordem das coisas. Parece que eu tive umas 300 vidas”, brinca.

 

Por um capricho do destino, foi justo a fase em que lhe faltou o emprego aquela que pautou seu destino recente.

 

Sem carteira assinada nem previsão de bico, Tião foi morar nas ruas da capital paulista em 2004 —ano em que a reportagem da Folha o conheceu, enrolado em um cobertor de feltro e segurando uma bandeira do Brasil, durante protesto na praça da Sé pelo assassinato, a pauladas, de sete moradores de rua.

 

“Passei anos tentando esquecer a sensação de viver ao relento. Não bebia nem usava drogas, então tentava me alienar na imaginação e na escrita. Nunca me sentia presente. Era como se minha alma estivesse fora do corpo”, diz, com a voz embargada. “Me perguntava: ‘Se tive casa, pai e mãe, e nunca me faltou nada, o que é que eu tô fazendo aqui?’. Mas a resposta nunca vinha.”

 

Foi a dura vivência de sem-teto na megalópole paulista que o levou a integrar a atual equipe de Coordenação de Proteção da Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social da cidade de São Paulo.

 

O novo emprego inspirou gracejos dos ex-companheiros de militância nos movimentos de catadores e de moradia. “Esse aí é de passar no pão”, divertem-se, ao cumprimentá-lo, em referência à marca de margarina que lembra o nome do prefeito João Doria (PSDB).

 

“Sei que essas pessoas me deram um voto de confiança. Só não sei até quando”, diz. Tião afirma ter aceito o posto na secretaria no segundo convite do secretário Felipe Sabará (PSDB) por não concordar com intervenções feitas pela prefeitura na região da cracolândia. “Não sou do ataque. Sou da proteção. E meu defeito é a autenticidade. Só me ferro por isso.”

 

EXPERIÊNCIA

Contratado há pouco mais de um mês, ele agora auxilia na elaboração e adequação de projetos para a população de rua, circulando sob as mesmas marquises que um dia lhe serviram de abrigo. “Contribuo com minha experiência. Mas sempre digo que um projeto que mexa com a vida das pessoas tem, antes de tudo, de ouvi-las.”

 

Nascido em Assis, no oeste paulista, Tião foi o sétimo filho de Dionísio e Vitalina Nicomedes, casal pobre e semianalfabeto dono de um ferro-velho. Aos 11 anos, perdeu o pai. Um ano depois, a mãe.

 

Criado por uma irmã freira, hoje missionária em Moçambique, aos 17 anos entrou para a Escola de Aprendizes-Marinheiros de Vila Velha (ES). Aquartelado, estudou e juntou dinheiro por um ano, mas não se formou. “Queria conhecer o mundo. Peguei o dinheiro e saí pelo país que nem um burro desembestado.”

 

Mudou seis vezes de estado. Ergueu paredes, serviu mesas, limpou tanques de petroleiros e desenhou letreiros em lojas. Quase virou pastor evangélico. Girou, se reinventou, mas não conseguiu assentar. E girou de novo. “Minha vida foi trabalhar de dia para comer e dormir de noite”, diz. “Num mês pagava a pensão e passava fome. No outro, atrasava a pensão e comia melhor.”

 

Em São Paulo, trabalhou descarregando caminhões na zona cerealista até montar um negócio, com seis sócios, de produção e instalação de letreiros nas lojas do Brás. “A gente dominava a região.”

 

A sede da empresa, na rua Celso Garcia, virou também moradia, mas um acidente em 2003 selou sua desgraça. Tião despencou de um andaime a seis metros de altura. “Achei que era o fim, mas caí no toldo, que me salvou.”

 

Recobrou a consciência longe da loja da queda e percebeu que tinha sido abandonado pelos sócios. Resgate, hospital, mão quebrada, escoriações por toda parte. Depois da alta, encontrou a oficina em reforma, sem sinal de seus pertences.

 

Com o braço engessado, sem poder trabalhar, em pouco tempo foi para a rua. “Na primeira noite, não dormi. Fiquei no Mercadão [Municipal], que tinha comida e era uma área familiar pra mim. Na segunda noite, eu apaguei”, conta. “Aí virei morador de rua mesmo porque acordei meio-dia e a cidade estava normal, mas eu estava deitado na calçada.”

 

Vencedor de concursos de redação na vida escolar, escrever foi seu refúgio para o desencanto das ruas. “Me ajudava a não ficar doido.”

 

O hábito lhe rendeu o apelido de poeta. “Mostrava meus textos para pessoas que se interessavam. E só para elas eu não era invisível.” Tião diz que a vergonha de relatar sua situação à família o impedia de pedir ajuda.

 

MASSACRE

Era agosto de 2004, e Tião dormia pelas calçadas do centro quando ocorreu a série de assassinatos de moradores de rua na região da Sé.

 

As mortes e o medo o levaram a participar de manifestações e a dormir nos albergues municipais. “O massacre ficou sem solução. Não tem nenhuma testemunha viva.”

 

A cada encontro com a reportagem da Folha, Tião era menos feltro. Dos albergues, foi encaminhado a repúblicas de ex-moradores de rua para, então, receber um auxílio-aluguel de R$ 300 por mês.

 

Os esforços para se esquecer dos dias de rua foram vãos. Essas memórias insistem em voltar em seus escritos. Tião relatou a vida de um catador de materiais na peça “Diário de um Carroceiro”, drama encenado no Teatro Fábrica, em 2006. No ano seguinte, publicou o livro de poesias “Cátia, Simone e Outras Marvadas”.

 

Hoje, prepara uma autobiografia enquanto o novo trabalho o confronta com decisões “pesadas e impopulares, mas importantes”. “Se tivesse vivido numa casa a vida inteira, acharia tranquilo tomar barraca de morador de rua que obstrui a passagem. Mas olho e penso: poderia se eu ali.”

 

Ex-freguês de grupos que distribuem comida a moradores de rua, Tião diz que hoje enxerga a prática com outros olhos. “Não ajuda. Quando uma pessoa come um marmitex no chão, vai perdendo a identidade humana”, avalia. “Se ele vai a um centro de acolhida, pode lavar as mãos.”

 

A renda fixa de pouco mais de dois salários mínimos ainda não se converteu em estabilidade. “Acho que minha sina é ter vida precária. Uma vida por arroz e feijão”, diz. “Ainda assim, sou grato pelo pouco que tenho. E sigo perguntando: ‘O que eu tô fazendo aqui?’. Mas a resposta ainda não veio.”

 

Fonte: Folha de SP


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